terça-feira, maio 30, 2017

Conjugar...

Conjugar é dos actos mais determinados e, por vezes, mais difíceis que se podem ter. Conjugar uma coisa com outra, afim ou antagónica, exige determinação e um querer que tantas vezes nos levam à exaustão ou a uma realização pessoal mais completa. Quase tudo o que conjuguei até hoje levou-me mais a campos de realização, mesmo que o caminho tenha sido de exaustão. Corri por gosto e não me cansei.

Porém, este conjugar começa a ser cada vez mais pragmático do que estóico. Paro para pensar - ou não, pois quase sempre medito em movimento - e concluo que a realização pessoal cada vez mais se encontra em ter tempo, em somar – aí, sim, não me sinto escravo dum verbo - ao tempo qualidade. Este tipo de soma não acumula materialmente como estamos habituados, mas adiciona essas coisas, invisíveis aos olhos, que um aviador francês contou a adultos a quem as circunstâncias haviam subtraído a infância.

Conjugo uma vida de ritmo moderno com uma vida de ritmo campestre. Pode parecer a conjugação perfeita, e talvez o seja, mas para um homem de formação epicurista como eu, deformado por a óptica de Spinoza, confesso não estar a ser fácil para corpo e mente este conjugar.

Há anos atrás, um dos meus mais estimados amigos, o Jorge Neto, falava-me de sermos “caçadores de experiências”. Ouvia-o com entusiasmo e o horizonte era outro, vislumbrava fronteiras e vontade de cruzá-las. Estamos a vários quilómetros, e países, de distância um do outro, cada um “caçou” e “caça” experiências que conjuga com as nossas parceiras de caçada - o cônjuge, a acção substantivada na pessoa – mas o nosso tempo já não é esse, o nosso espaço já não é o quintal da casa dos meus pais e a nossa dimensão humana alberga novos seres, como os nossos filhos.

Escrever, o que vejo desde esta janela do ser, têm-me ajudado a memorizar formas de conjugar, com alguma correcção, as suas irregularidades, ajuda-me a ser flexível e a ter uma certa percepção do tempo, o que a experiência me faz ver como o mais importante do verbo…

O frontal é o grande amigo do bom leitor. Isto é, do leitor que se preocupa em não incomodar os outros.

«SAL SOBRE A FERIDA» - Piedad Bonnett (trad. Luis Leal)

Tradução dedicada ao meu amigo Adolfo Fernández.

"Basta olhar fixamente a cicatriz,
as suas imperfeitas costuras,
para que a ferida comece a abrir-se
e a contar as suas histórias.

Cuida do sal dos teus olhos".

segunda-feira, maio 29, 2017

Cuido de flores

Cuido flores
Numa estufa
Com a ilusão do ar livre...
Emoção do crescimento.
Remoção de ervas daninhas.
Motivação de substrato rico em esperança.

Muitas ficam pelo caminho
Outras tornam-se ornamentais
E algumas fundamentais.
A maioria é colhida pela necessidade de trabalho.
Porém algumas, de flores, transformam-se em árvores e, em momentos extremos de calor, abraçam-me com a sua sombra.

¡Luis! ¡Dame un abrazo! ¡Cuándo yo diga a los amigos que te he visto!

E, como diz aquele que me ensinou:

Parece que o mundo, afinal, tem sentido.

07/IV/2017

domingo, maio 28, 2017

Lembranzas de Fernando Assis Pacheco



"Neto de emigrante galego a Portugal, Fernando Assis Pacheco é un recoñecido xornalista e escritor portugués." (Outono de 1995 - Memoria da Galiza)

Assis Pacheco morreu a 30 de novembro de 1995. Nesse mesmo dia, sessenta anos antes, tinha morrido Fernando Pessoa.





sábado, maio 27, 2017

Tudo apita...

A semana foi febril e cansativa e acabei por adormecer no sofá da sala hoje à tarde. Este maio já precisa de ventoinha e a/c para se poder estar em casa, mas o céu está carregado de cinzento. Sofro bastante fisicamente com este calor que me alaga o cachaço e, quando estou a trabalhar, me entra como gota a arder pelo canto do olho.
A sesta impôs-se ao meu corpo desabituado de tão revitalizante costume. Os olhos olharam para dentro mas não passaram da fase REM. Rápido apitou o final da máquina de lavar e o termómetro com 38.5°c do meu filho mais velho. O corpo lento cumpre com as rotinas e a mente apercebe-se que tudo nesta vida apita. O despertador, o micro-ondas, as máquinas de lavar, os toques de entrada e de saída, as luzes acesas esquecidas do carro, o relógio desportivo com pulsómetro e gps, o telemóvel, a chaleira, o aviso de falta de bateria e até mesmo os ouvidos quando a sede do corpo desidratado dá sinal, essa apitadela interna a avisar para repor reservas.
A febre do meu filho não baixou. Voltámos à urgência e aí fizeram-lhe a sua primeira análise ao sangue desde que tem consciência. Chorou algo desconcertado com o local e com o termostáto do seu pequeno organismo a indicar o motor em excesso de temperatura. Com as lágrimas a escorrerem lá lhe correu o sangue por umas vias que se mantiveram no braço durante quase uma hora, o tempo necessário a investigar a origem destes dias febris.
Enquanto esperávamos o resultado, sentado no meu colo e com o braço direito esticado em cima do meu, fomos falando de aprender com o que vivemos, manter a calma, de como o seu avô ia comigo tirar sangue em jejum e que depois de encher seringas de plasma tinha os melhores pequenos-almoços com o meu pai, de como foi ter um avô que madrugava para que o neto fosse atendido pela médica de família e até contámos uma história. Gostava de ter tempo para lha escrever e que esta nota diária me de uma apitadela à memória e à criatividade. Ele e o irmão merecem.
Porém, vou apagar os dados do telemóvel e tentar isolar-me de tantas apitadelas. Espera-me o despertador dentro de sete horas e mais trabalho no campo. Tenho esperança que o amanhã seja mais fresco.

quinta-feira, maio 25, 2017

Todas as Quintas-feiras da Ascensão, a minha avó Helena ia ao campo apanhar um ramo de espiga

Todas as Quintas-feiras da Ascensão, a minha avó Helena ia ao campo, muitas vezes ao descampado entre o pátio e a linha de caminho de ferro, apanhar a espiga. Toda a vida vi um viçoso ramo de várias plantas, composto por uma espiga, um malmequer, uma papoila, um raminho de oliveira, videira e alecrim, atado por uma linha de coser e pendurado na parede da sua cozinha, exactamente no mesmo prego onde o meu avô João pendurava o calendário anual da espingardaria, na qual se munia de cartuchos para a caça, e pelo qual ambos organizavam os seus dias.

Lembro-me de ir à espiga sem entender a tradição do ramo que compúnhamos. Nunca mo explicaram, porém, aprendi a sua simbologia no pão que nunca me faltou, na fortuna de tempo que comigo gastaram, no amor incondicional que me deram, na candeia que iluminou as minhas noites, nos sorrisos e nas gargalhadas cúmplices de ser imperfeito e na gratidão pela saúde e força com que me puderam ver crescer.

Abundância, alegria, saúde e sorte, quem não as deseja? À frente da minha casa tenho um descampado onde posso encontrar tudo o que é necessário para compor um ramo de espiga como os da minha avó. Muitos não têm, nem tiveram, este privilégio. No entanto eu cresci, tenho mesmo certificados que o atestam, e já não vou à espiga.  Deveria envergonhar-me e não me desculpar com a falta de tempo desta minha vida dita “moderna”… 

quarta-feira, maio 24, 2017

Árvores sem água...

O sistema radicular duma árvore procura sempre, com mais ou menos intensidade, com mais ou menos profundidade, água. As nossas árvores são como os nossos filhos, isto é, crianças e algumas ainda bebés, precisam do nosso cuidado, da nossa supervisão, mas, tal como eles, também têm de aprender a sobreviver em momentos de seca, de escassez e de negligência por parte de outros com quem se cruzam no caminho.
Estamos no final de maio, porém lá fora estão 38°c sem perspectivas de chuva. O sistema de rega é o reflexo da incompetência de quem o montou e da nossa inexperiente boa-fé. Revolta-nos a mentira, o «é ainda hoje», mas a batalha não é fácil, pois o nosso exército só tem como aliado a paciência consciente num terreno que não nos permite nem ataques, nem manobras invasivas. Há batalhas condenadas desde o princípio ao empate para não serem derrotas. Há que manter a calma, erguer o olhar com coragem até que o campo de batalha seja abandonado. Nunca imaginei que para plantar árvores, para as ver crescer sem outras intenções mais além da sustentabilidade familiar e do nosso entorno natural, tivesse de me socorrer da arte da guerra. Tampouco imaginei voltar atrás no tempo, ter necessidade de fé para ir na procissão da cidade para pedir chuva a Deus ou ao seu secretário S. Pedro. 
Tenho medo de falhar aos nossos filhos, tenho medo que as nossas árvores morram de sede num terreno comprado com esforço e cheio de poços secos. Tenho medo de mostrar medo e não a confiança de quem tem aliados. Tenho medo de perder a paz encontrada no trabalho duro do campo e do orgulho da humildade de trabalhador rural dos nossos antepassados... 
Se árvores e pessoas sobrevivermos à seca, espera-nos continuarmos de pé... 
Amanhã espera-se mais trovoada, mas água nada... 
Há quantos anos abandonei a procissão?

À hora da sesta não se contam carneiros... contam-se elefantes!

El primer poema de Santi

Mi hijo mayor, en la plenitud de sus 6 años, se acercó a mí y me dijo:
«papá, he escrito un poema».
En su cuaderno amarillo, con un “Sr. Caca” en la portada, donde escribe lo que le apetece, había escrito (la ortografía nada me importa):
“Mosca, mosca está en el
árbol y se marcha a la
ventana, y vio abejas
saludando a la mosca.”.
Podéis pensar, legítimamente, que lo hemos estimulado a eso, a saber lo que es un poema. Algo habrá visto en casa, seguro. Sin embargo, el mérito lo tiene su profesor, el incansable Ismael que le enseña desde el primer día que en todo lo que él y sus compañeros hacen hay dignidad, hay sueños, hay magia y hay poesía… Gracias Ismael por pulir este poema escrito, hace ya seis años, por su madre y por mí en el cuadernillo amarillo de nuestras vidas.

Um homem de palavra sem palavras

Para alguém como eu, cujo silêncio é muitas vezes o encontro com uma palavra, não conseguir dizer ou escrever nada é uma realidade frequente. 
Fico em silêncio na ausência dos que me são queridos, dos que estão longe e daqueles a quem a minha boca só diria banalidades. Um homem de palavra também fica sem palavras. Apesar de agora estar a transcrever o meu silêncio, ele ficou patente no meu olhar triste em frente da televisão e na atrapalhação mundana ao telefone com um dos amigos que mais quero.
Manchester é mais um lugar mediatizado por "lobos solitários", termo que desprestigia a honra animal do lobo ao usar a sua espécie para denominar uma indigna de vida, como a do terrorista, e do outro lado da linha há uma voz que quero sempre ouvir, uma voz que trago orgulhosamente da terra das raízes. Espero que, mesmo quando a terra nos for leve ou pesada, o timbre das nossas vozes se possa ouvir e continuar a existir naqueles que por aqui ficarem. Se alguma coisa merece a eternidade, para além do amor verdadeiro, é uma amizade...

«No hay mejor desprecio que no hacer aprecio»

segunda-feira, maio 22, 2017

"Circunvalação" - Luis Leal

Circunvalação

à Industrial
aos meus professores
aos meus pais

Cotovelo apoiado na mesa, o professor não se apercebe
do olhar a fugir pela janela, do giz que se evade
do quadro e da matéria inerte dos livros.

A pé, não fica longe daqui a academia
aberta por Abril às vocações humildes da periferia.
Quero ousar ir para lá. Dizem-me poder abrir portas com notas
e ser aceite num colégio de santos espíritos.
(Imagino o honesto estudo misturado com anseios
adolescentes acarinhados por o sangue analfabeto dos avós.)

Do outro lado da estrada há promessas de conhecimento,
de diplomas vetados a passados familiares.
A via rápida é uma fronteira de carros em movimento.
Alguns dos que para o outro lado passaram de si inseguros
vestem trajes negros, gritam regras e regem-se por estatuto
que lhes proíbe luto por os que pereceram atropelados.

Então, estás a prestar atenção?

Ter tão pouca idade
não me permite ir
mais além da circunvalação,
ir lá a cima e voltar ao bairro,
ao perímetro da cidade,
ciente da verdadeira faculdade
ser onde se está, curioso, nesta escola viva,
que me ensina imperfeita, mas por todos e para todos.

Desculpe professor, estava distraído.
Eu já sei a matéria, os meus pais viveram
a Revolução Industrial.


quinta-feira, maio 18, 2017

«Poema» - Nuno Júdice

«Poema»

O mar, e por cima de nós os ramos
do crepúsculo, e os remos do sol que
se afundam no mar do horizonte.

Nuno Júdice, "O Movimento do Mundo", 1996
(fotografia de Fernando Manuel)


terça-feira, maio 16, 2017

"Fermoso rio Lis, que entre arvoredos" - Francisco Rodrigues Lobo

Fermoso rio Lis, que entre arvoredos
Ides detendo as águas vagarosas,
Até que üas sobre outras, de invejosas,
Ficam cobrindo o vão destes penedos;

Verdes lapas, que ao pé de altos rochedos
Sois morada das Ninfas mais fermosas,
Fontes, árvores, ervas, lírios, rosas,
Em quem esconde Amor tantos segredos;

Se vós, livres de humano sentimento,
Em quem não cabe escolha nem vontade,
Também às leis de Amor guardais respeito.

Como se há-de livrar meu pensamento
De render alma, vida e liberdade,
Se conhece a razão de estar sujeito?

Francisco Rodrigues Lobo 



"Nasceu o rio Lis junto a uma serra" - José Marques da Cruz

Nasceu o rio Lis junto a uma serra
No mesmo dia em que nasceu o Lena;
Mas com muita Paixão, com muita pena
De o seu berço não ser na mesma terra

Andando, andando alegres, murmurantes,
Na mesma direcção ambos corriam;
Neles bebendo, as aves chilreantes
Contavam esse amor que ambos sentiam.

Um dia já espigados, já crescidos
Contrataram casar, de amor perdidos
Num domingo, em Leiria de mansinho…

Mas Lena, assim a modo envergonhada
Do povo, foi casar toda enfeitada
Com o Lis mais abaixo um bocadinho
                           
José Marques da Cruz (1888-1958)

Painel decorativo «Lenda do Lis e Lena» (1,80 x 3,60m) da autoria de Augusto Mota



segunda-feira, maio 15, 2017

Salvador

O meu irmão José Antonio recorda-me sempre as palavras de Juarroz cuja ideia de lembrar-se de alguém se assemelha a uma salvação. Os finados que não conhecem a eternidade são aqueles esquecidos pela memória, penso, e cada dia interiorizo mais as suas palavras e as sinto como as orações que me foram ensinadas na fé da infância. 
Lembramo-nos constantemente um do outro e somos, em grande parte, a salvação um do outro e isso é algo que mostramos com orgulho. A verdadeira amizade equilibra-se entre felicidade e tristeza. Alegramo-nos e entristecemo-nos com os sucessos e fracassos, com a saúde e a doença, com os caminhos em frente e com os sinuosos, mas também com as pequenas coisas que nos simbolizam. O Atleti, o Benfica, a filosofia, a poesia, Espanha e Portugal escatológicos e devoções a santos como o Torrente. Ontem foi com o Salvador, com um festival que não vejo, me passa ao lado, mas que, com um jovem cantor, comprometido com a sua arte, nos salvou a todos por breves momentos, até que cheguem as piranhas em busca de sangue fresco e imediato. 
O José soube da vitória festivaleira histórica antes de mim e sentiu-a por ter sido na língua do seu irmão, também sua, porque a escolheu para a sua família. O Salvador, que o cristianismo promoveu desde a nosso berço, apresenta-se de várias formas. Eu, míope e com estigmatismo, ouvi esta música, em partilhas massificada pelas circunstâncias, com o coração e vi uma aura de beleza, de necessidade de voltar a viver "devagarinho". Não conhecia este Salvador, tinha ouvido falar dele na rádio, e, tal qual como o outro, mesmo que não me consiga salvar para a eternidade, é verdade o que transmite. Que se massifique a sua individualidade, ele pode fazê-lo por nós os dois. O José e eu. É em português por casualidade, mas a salvação não conhece línguas.

domingo, maio 14, 2017

Leaving Sicily...

Há um ritmo italiano e um ritmo siciliano. É a base do nosso ritmo latino sem as especificidades ibéricas, mas, mesmo assim, não sendo eu compassado pelos ritmos do norte, tive dificuldade em adaptar-me aos vinte minutos que se podem transformar em duas horas ou à frenética condução automóvel alérgica ao cinto de segurança e indiferente a passadeiras.
Cada povo tem o seu ritmo vital e o da Sicilia é originalíssimo. Apesar do cansaço, foi um privilégio vivê-lo no meio da sua gente. Voo sobre o mar da nossa civilização em direcção às penínsulas, primeiro a bota que me chutará para a jangada de pedra do José Saramago, essa península atracada por uma corda bastante velha à Europa.
Poderei um dia ir ao Novo Mundo?

Haiku de aeroporto 8

Quando se abrem as portas
De embarque já não há
Volta atrás na viagem.

Navegar

Ser o timoneiro dum veleiro por momentos, durante um passeio pela costa de Palermo, é o exemplo irónico dum alentejano navegador que, quase em saber nadar, parte em conquista do mar. O exemplo pouco se adapta a mim, pois sei nadar relativamente bem, e não sou navegador como muitos dos meus antepassados que se foram embora, partiram e mantiveram a esperança de correr o mundo inteiro.
Esta foi uma sensação ocasional repleta de emoções. Primeiro a de ser o homem do leme, essa que nasce do fundo do ser, e depois, à volta, quando nos apercebemos que não somos capazes de chegar ao destino, o reflexo da tristeza, a fraternidade de saber do sofrimento do outro e ver, na nossa incapacidade de resgatar os náufragos, o rosto dos nossos seres queridos. Assim foi o meu Mediterrâneo, o entusiasmo inicial afogado num cemitério aquático. A surdez do grito rebenta-me os tímpanos.
Nunca serei timoneiro de nada, com excepção da minha alma. Talvez esteja condenado desde tempos amnióticos. O meu corpo é da terra, a sua força vem das raízes, mas tudo o resto é água. E, como o poeta me disse, é salgada.

sábado, maio 13, 2017

Centenário

Em terra de "Madonnas", penso como teriam sido os últimos cem anos de Portugal sem Fátima? Mas, no fundo, o que penso é como teria sido a minha infância sem a presença desta virgem na vida de duas das mulheres mais importantes da minha vida, a minha mãe e a minha avó. Escrevo isto em paz, pois aprendi que os "ses", as realidades paralelas, não existem. As pessoas sim.

Em Palermo não sejas D. Vito

«O Polvo» teve várias temporadas mas na minha memória de poucos canais ficou um comissário honrado, a cidade de Palermo e a máfia. Já se passaram muitos anos desde então e eu quase não me lembro de pormenores relacionados com essa época hoje vendida como «caderneta de cromos». No entanto, hoje estou em Palermo, sou visto como espanhol, falo todo o dia em inglês e escrevo o que sinto em português. No meio desta esquizofrenia de dia, a qual aceito sem divagar mais que a conta, sou acarinhado por amigos italianos. Conheci Ungaretti, também ele com um vínculo com a língua portuguesa, devido aos seus anos brasileiros, levo-o na mala e espero entrar no seu hermetismo, mas também levo diálogos com pessoas como a Carmen, que, com coragem siciliana, me contou sobre como a sombra da máfia eclipsa muita da luz desta região. Apesar de muito ter mudado desde a norte de Falconne, o espectro da máfia paira sobre esta sociedade. Há mais coragem por parte dos «parlamitanos» graças a uns quantos mártires que ajudaram a assumir a existência de grupos criminosos organizados. Assumir é sempre o primeiro passo para resolver o que quer que seja. Admiro profundamente a coragem de quem se assume. Este povo fê-lo após anos de negação, o problema ainda existe, mas esta gente já se ri dele. Basta vermos a quantidade de merchandising a ridicularizar todos aqueles que se querem assumir Vitos Corleones...

Palermo's balcony

sexta-feira, maio 12, 2017

Scirocco

Em Palermo, o vento que sopra, cor de terra, vem de África e chama-se «Scirocco». Ontem soprava forte e deixou rasto na minha pele e cabelos. Foi o momento em que o mediterrâneo tentou ser mais forte que a violência atlântica que me corre nas veias. Apesar de não lhe ser indiferente, não foi possível esta intrusão marítima. Como é sabido a grande diferença entre mares e oceanos nada tem a ver com dimensão de ambos, mas sim com marés. Num mar, a maré quase não se nota, porém num oceano pode atingir niveis de autêntica devastação ou afastamento.
A minha língua nasceu à beira-mar, mas cresceu com vontade oceânica e, mesmo filha de pais separados, edifica-se como pátria em qualquer lado.

quarta-feira, maio 10, 2017

Uma excelente entrevista dum amigo que muito estimo e dos poucos a quem chamo mestre, Antonio Sáez Delgado

Ojos negros (Luana Ribeiro)






Fabrizio de André

Fabrizio de André, cantautor e poeta italiano até hoje desconhecido para mim. Fez parte da banda sonora duma visita guiada no banco traseiro dum pequeno carro citadino pela cidade de Palermo. Ao volante ia Antonio e ao lado a sua adorável mulher, Carmen. Valeu a pena a espera, por tanta coisa mesmo com o cansaço duma rotina de actividades de projectos europeus.
Lembrei-me várias vezes da vespa do Nani Moretti, devido às ruas e o carácter italiano, mas tive a sorte de vislumbrar a cidade que me acolhe desde o alto, um «Montreale» com um «Duomo» turístico e ao qual chegámos fora de horas. A presença de Salvatore e a sua namorada, e dos dois fantásticos guias foi um dos melhores momentos desta semana «apalermada». Uma vez mais, a poesia salva o homem de fé no verbo adjectivado pela alma. Foi bonito ver como Antonio e Carmen partilharam a sua canção de amor com dois quase desconhecidos. Só alguém com uma tremenda confiança é capaz disso, neste caso uma musa com dois filhos chamada Carmen e um poeta cumplice do mês de maio, de toda sua beleza, quer dizer, Antonio Maggio.

terça-feira, maio 09, 2017

Palermo windows... (09/V/2017)

Um dia palerma em Palermo

Palermo é a capital duma Sicilia que sempre me remeteu para os filmes do Francis Ford Coppola, para a pobreza emigrante e para a proteção dum padrinho. Nunca imaginei a possibilidade de aqui estar, contemplar o mediterrâneo enquanto provo uma iguaria daqui, a «carranchina», e falo com gente da terra, uma terra tão latina como as minhas.
Mas neste contemplar, algo cansado da viagem de ontem, nada faria adivinhar a notícia que chegaria de casa, da fronteira vigiada por causa da visita do Papa Francisco. A morte dum conhecido estimado, a tragédia absurda dum sofrimento que pode levar a atirar-se uma pessoa contra uma árvore, o fim duma vida e, quem sabe, rezo para que não, o tormento para outras.
Estou em Palermo, aparvalhado, mas rodeado de gente que a vida me deu o privilégio de conhecer. Longe de casa, é fácil sentirmo-nos culpados de termos embarcado na viagem, do apoio que não damos, mas é errado sentirmo-nos assim. Por mais que as imagens se assomem à minha mente, não fui eu quem escolheu que elas existissem. Apenas escolho não esquecer-me deste dia. Honrá-lo pela estima que tenho aos presentes e aos finados. Peço perdão por não conseguir mais, reconheço sentir-me palerma em Palermo.

Eduardo Salles - "¿Y qué hiciste de tu vida?"




Eduardo Salles é mexicano.





segunda-feira, maio 08, 2017

Badajoz, Madrid, Roma e Palermo

Duas penínsulas e uma ilha em menos de meio dia. Desde o ar, as fronteiras são o que são, isto é, limites de humanidade nos quais se estruturam homens e mulheres, os únicos seres vivos com consciência disso. A natureza tem fronteiras diferentes, estruturam paisagens, potenciam faunas e floras diferentes, porém a grandeza criadora não necessita consciência. Aí somos diferentes. Sabemos que somos natureza, mas não só. Não faz mal, desde que saibamos coexistir.

Haiku de aeroporto 7

Para atingir o Nirvana
Basta recostar-me e iluminar-me com a luz atribuída ao meu assento.

Haiku de aeroporto 6

Aeroporto: templo de técnica
supervisionada por Ícaro.
Antes de viajar vejo opções de concorrência.

Haiku de aeroporto 5

Transbordo: um intervalo
de um filme a correr
entre assentos e assentos.

Haiku de aeroporto 4

Quis ser amável.
Não fez falta.
Aqui tudo anda sobre rodas.

Haiku de aeroporto 3

Esperanças e medos viajam
Com cinto de segurança posto
Como perfeitos desconhecidos.

Haiku de aeroporto 2

É fácil reconhecer o viajante
com mais bagagem mesmo
sem malas leva a família dentro.

Haiku de aeroporto 1

Facturas a pressa viajante
Numa passadeira rolante.
Até ao instante pelo qual passas...

sábado, maio 06, 2017

"Fronteiras" por Luis Leal no "III Jantar Literário da Escola Secundária Gabriel Pereira" (5/V/2017)

Quando era adolescente, desde a Escola Secundária Gabriel Pereira, vislumbrava a circunvalação, talvez a primeira fronteira consciente. Quase 20 anos depois, falámos de outras fronteiras, não só as das nossas identidades peninsulares, mas também sobre aquelas que impomos a nós próprios. Parabéns a todos os alunos e docentes da agora “GP” (para mim foi “Industrial”) por me mostrarem que esta continua a ser uma “Escola Viva”! Obrigado.

Cuando era adolescente, desde el Instituto de Secundaria Gabriel Pereira de Évora, vislumbraba la circunvalación, quizás la primera frontera consciente. Casi 20 años después, hablamos de otras fronteras, no solo sobre nuestras identidades peninsulares, pero también sobre aquellas que imponemos a nosotros mismos. ¡Enhorabuena a todos los alumnos y docentes de la ahora “GP” (para mí era “Industrial”) que me enseñaron que esta sigue siendo una “Escuela Viva”! Gracias.




Uma nota de gratidão minha a uma nota anónima. «Gracias/Obrigado». Quero continuar a acreditar que é o meu dever...

quinta-feira, maio 04, 2017

III JANTAR LITERÁRIO NA ESCOLA SECUNDÁRIA GABRIEL PEREIRA - ÉVORA (05/V/2017)

"Realiza-se no próximo dia 5 de maio, pelas 20horas, na sala polivalente da Escola Secundária Gabriel Pereira, em Évora, o III Jantar Literário.

Contamos com a presença de Luís Leal, professor de Português em Espanha. Para além de nos falar da sua experiência profissional, o Luís, ele próprio um antigo aluno de humanidades da Escola Secundária Gabriel Pereira, fará uma breve exposição sobre a literatura de fronteira. A organização lançará, depois, alguns tópicos para um pequeno debate (Produção literária em contexto regional; associativismo “literário”; perspetiva comparada: Espanha/Portugal  - Andaluzia/Alentejo).

Num segundo momento, queremos fazer uma breve homenagem à poetisa Fernanda Seno. Para tal, alguns alunos estão já a preparar a leitura de poemas desta nossa tão querida colega. Estende-se aqui o convite a todos os professores e alunos que, de alguma forma, queiram participar neste tributo.
Desta vez o III jantar literário será um “jantar sem jantar”. O bar da escola estará aberto. Será servido um pequeno “chá, tostas e torradas” e estarão também disponíveis, para venda, outras bebidas. A entrada no jantar é gratuita.

Regista-se, assim,  o convite a todos aqueles que nos queiram acompanhar, de novo, nesta jornada estimulante, alunos do agrupamento de escolas nº 2 de Évora, pais e encarregados de educação, a comunidade em geral. Outras informações organizacionais, podem ser obtidas através dos seguinte endereço electrónico  manuelpicarra@gmail.com".

III Jantar Literário

Escola Secundária Gabriel Pereira

20.00 – Abertura

20.10 – Homenagem à poetisa Fernanda Seno: leitura de poemas

20.30 – “Chá e torradas” + Momento musical

21.10 – Conversa com o professor Luís Leal: “Fronte(i)ras”

22.30 – 2º parte da homenagem a Fernanda Seno: intervenções de alunos e professores;
               leitura de poemas

23.15 – Encerramento


Cozinhas de hipócrisia...

Alimentar deve de ser das tarefas mais nobres que se podem ter para com outro ser vivo, ainda mais se, o que alimenta, tem um talento especial para deleitar os sentidos do outro para além da necessidade calórica. Conheço e conheci gente com este talento, o de cozinhar tão bem que essa característica se evidencia na minha percepção e reconhece a minha incapacidade de fazer o mesmo ao paladar. A minha avó era assim, a minha madrinha é assim, a Elsa é assim. Eu agradeço, desfruto do estômago, a cabeça analisa o porquê e o coração é grato. 
Mas, aqui por esta terra de «Chefs» de estrelas de empresas pneumáticos, fala-se do abuso justificado que se faz dos estagiários ou aprendizes de cozinheiros de alta cozinha, com todo o glamour que isso implica. Na minha profissão fui estagiário, aprendi muito e fui explorado, mas tive a sorte de auferir um rendimento ao final do mês, o que ajudou a equilibrar a aprendizagem e a exploração. Creio que se assim não fosse, e tendo em conta a sensação de não ter nada a perder que tinha então, haveria uma revolução. O que aprendia não compensava a exploração não remunerada e, aqui nos meus pensamentos hipotéticos, até teria enfrentado fisicamente o que me explorava. Ainda bem que tal não aconteceu. Como o meu avô dizia, perderia a razão para compensar o gosto dos punhos. Tinha razão, mas, ao reconhecer que tinha vontade de lhe ir aos cornos, sinto que até faz de mim melhor pessoa.
Depois disso a experiência encarregou-se de me pôr a formar gente. Já lá vão uns quantos, espero que não tenham vontade de ir-me aos cornos, mas nunca se sabe. Apenas tenho a certeza de ter sido sempre honesto na experiência partilhada, o que farão com ela já é sua opção.
Tudo isto para não me esquecer de pôr neste diário o quanto desprezo a atitude destes «chefs» aos gritos e a partirem loiça egocêntrica pela cozinha. Podem adjectivar os pratos como os escritores fazem aos textos, se calhar até são artistas, porreiro, mas não me venham com tangas que é assim que se entra no mundo da gastronomia dita sublime, desconstruida, molecular, na moda e para a moda, paga a peso de ouro e estupidez.
Não trocava as bifanas de Vendas Novas por uma iguaria 5 estrelas dum catalão com lista de espera. Primeiro porque não tenho dinheiro para lá ir comer e segundo porque prefiro más companhias, gente de trabalho, nada refinados e de paladar prosaico e guloso de mostarda como o meu.
Já um desses «chefs» se fosse aprender que à mesa a boa educação passa por ter comida para sobreviver e não para criticar, para aumentar audiências, como se fosse trinca para cão, mereceria esse título tão kaiserino de «chef». O problema é que somos nós quem põe a colher de pau na mão destes elitistas do design do paladar e deixamos que façam pouco da educação dos nossos sentidos, por vezes até admitimos ataques a legados gastronómicos familiares por acreditarmos num estatuto que nem sabemos como o ganhou. 
Estagiário estás aí para aprenderes a seres melhor que isso. Nem tudo é currículum... eu prefiro o assado de borrego da minha avó e ai de quem disser mal dele! Já o admiti, por vezes tenho vontade de escrever com os punhos...

terça-feira, maio 02, 2017

Para acompanhar no dia de anos...



Um abraço amigo, Luís!





"Bushido Alentejano" - Luis Leal (in revista "Mais Alentejo" nº138, p.84)

Mais um ano. Um gajo vai fazendo o que pode, enquanto pode. Obrigado pela vossa amabilidade em felicitar-me. Gostaria de retribuir a atenção com uma crónica sobre, nas latitudes em que vivo, não ter direito a queixar-me, apenas a agradecer por estar rodeado de gente que me faz melhor. Obrigado. (“Bushido Alentejano” porque se publica na “Mais Alentejo” nº138, mas do que escrevo não se circunscreve a fronteiras).

Un año más. Uno va haciendo lo que puede, mientras puede. Gracias por vuestra amabilidad en felicitarme. Me gustaría retribuir la atención con una crónica sobre, en las latitudes en que vivo, no tener derecho a quejarme, solo a dar las gracias por estar rodeado de gente que me hace mejor. Gracias. (“Bushido Alentejano” porque se publica en “Mais Alentejo” nº138, pero sobre lo que escribo no se circunscribe a fronteras).

"Bushido Alentejano" - Luis Leal (in revista "Mais Alentejo" nº138, p.84)

É tão fácil confundirmos os holofotes da fama com a luz natural do prestígio, mais ainda neste tempo hiperbólico que vivemos. Compilam-se, assimilam-se e rejeitam-se exemplos. Primeiro a família (ou algo parecido), depois os amigos, afinidades e outras circunstâncias, mais ou menos gregárias. No meu caso, depois do óbvio e generalizável à maioria, foi o mundo das artes marciais, em especial, o Karaté Goju-Ryu. Reconheço que, antes do humanismo, e tantos outros “ismos”, já estava iniciado na “escola do duro e do suave”, oriunda duma longínqua Okinawa, posta na moda pela personagem do Mr. Miyagi no “Karate Kid II”. (Não vos remeto para o “Glory of Love” do Peter Cetera, porque hoje até nem estou muito sentimental).

Neste âmbito, no qual há uma ascensão graduada por cores de cinturões, conheci e conheço um pouco de tudo. A dedicação, a honestidade do estudo e a humildade, somados numa perfeição técnica e humana, com prova dos nove na discrição do espírito do “Bushido” (do japonês, literalmente, "caminho do guerreiro"). Por outro lado, encontrei a preponderância do ego, o nariz empinado, fanfarrão, a passear o cinturão sem o qual lhe cairia as calças do “Gi”, vulgarmente conhecido por “kimono”. Até aqui nada de novo. Somos assim e temos um legado proverbial a asseverar-nos o carácter com que nos assumimos perante o mundo.

Mais tarde, chego à academia, assomo-me a outras artes, insiro-me no mundo laboral e entrevejo que todos os microcosmos vivem rituais e cultos de personalidade semelhantes. Como no Karaté, podes ser atingido por golpes à má fila, teres de prestar reverencia a “senseis” da farinha amparo, mas também aprendes a salvaguardar a tua integridade, a definires a tua conduta e a apreender a essência do verdadeiro “budoka” (artista marcial), tão distante do fala-barato de muita teoria e nenhum exemplo prático.

Este universo, redundantemente agressivo na opinião de alguns, marcou profundamente a forma de interpretar o meu dia-a-dia, mundano e prosaico, e o de quem por cá anda. Confesso, não aprecio quem constantemente se lamuria, se vitimiza, justifica que o seu é pior que o do outro e, consequentemente, a culpa é, e sempre será, de outrem. Em suma, não gosto de queixinhas a pensarem que o mundo tem para com eles alguma divida mais além da dignidade intrínseca à condição humana.

As duas terras, entre as quais existo, são difíceis para se subsistir. Impera a desertificação e o trabalho não abunda. São realidades envelhecidas, periferias pobres votadas ao haraquíri pelo poder central, mas onde encontramos verdadeiros “mestres”, como dizia o meu tio António, do viver. Essa mestria ganha-se com o exemplo ao longo da vida, com constância e vivacidade e sem se cair no queixume. Infelizmente este reconhecimento está em desuso. As novas gerações estão acostumadas a títulos rápidos, a habilitações emitidas ao domingo, e não foram ensinadas a cantar, nem a comprar, na “Loja do Mestre André”.

Para bem e para mal, tenho uma teimosia quase bovina. Reconheço o estatuto de mestre a quem o mereceu a pulso, “velhos samurais que nem um ai se lhes ouve em vida, que, entre o desdém e a lisonja, sempre souberam o que são e o que valem”, esses que, mesmo com fome, palitam os dentes satisfeitos (voltando ao japonês: “Bushi wa kuwanedo taka-yoji”).

O “quejarse de vicio” espanhol é uma tendência por vezes mais forte que eu, tal como a herança lusa de “quem não se sente não é filho de boa gente”, porém renego-a. Não vale a pena, é uma perda de tempo e creio ter ainda alguma perspectiva. Não me socorro de nenhuma autoajuda disponível no mercado. Socorro-me do valor de tanta gente, mestres alentejanos e “extremeños”, a grande maioria idosos, cujo património, resistência, esforçar-me-ei por manter vivo.  

"Instantes" de Jorge Luis Borges (sem polémica de autoria, apenas poesia)



Instantes

(Nota: poema atribuído a Jorge Luis Borges, mas cuja autoria ainda suscita muita discussão e polémica, tradução de Luis Leal)

Se pudesse viver novamente a minha vida,
na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito, relaxar-me-ia mais.
Seria mais parvo do que fui, de facto
levaria muito poucas coisas a sério.
Seria menos higiénico.
Correria mais riscos, faria mais viagens, contemplaria
mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios.
Iria a mais lugares onde nunca fui, comeria
mais gelados e menos favas, teria mais problemas
reais e menos imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata e prolificamente
cada minuto da sua vida; claro que tive momentos de alegria.
Mas se pudesse voltar atrás trataria de ter
apenas bons momentos.
Se por acaso não sabem, de isso é feita a vida, só de momentos;
não percas o agora.
Eu era um desses que nunca ia a nenhum lado sem um termómetro,
um saco de água quente, um guarda-chuva e um para-quedas;
se pudesse voltar a viver, viajaria mais ligeiro.
Se pudesse voltar a viver começaria a andar descalço ao principio
da Primavera e continuaria descalço até terminar o Outono.
Andaria mais de carrossel, contemplaria mais amanheceres
e brincaria com mais crianças, se tivesse outra vez a vida por diante.
Mas já tenho 85 anos e sei que estou a morrer.


Instantes

Si pudiera vivir nuevamente mi vida.
En la próxima trataría de cometer más errores.
No intentaría ser tan perfecto, me relajaría más.
Sería más tonto de lo que he sido, de hecho
tomaría muy pocas cosas con seriedad.
Sería menos higiénico.
Correría más riesgos, haría más viajes, contemplaría
más atardeceres, subiría más montañas, nadaría más ríos.
Iría a más lugares a donde nunca he ido, comería
más helados y menos habas, tendría más problemas
reales y menos imaginarios.
Yo fui una de esas personas que vivió sensata y prolíficamente
cada minuto de su vida; claro que tuve momentos de alegría.
Pero si pudiera volver atrás trataría de tener
solamente buenos momentos.
Por si no lo saben, de eso está hecha la vida, sólo de momentos;
no te pierdas el ahora.
Yo era uno de esos que nunca iban a ninguna parte sin termómetro,
una bolsa de agua caliente, un paraguas y un paracaídas;
Si pudiera volver a vivir, viajaría más liviano.
Si pudiera volver a vivir comenzaría a andar descalzo a principios
de la primavera y seguiría así hasta concluir el otoño.
Daría más vueltas en calesita, contemplaría más amaneceres
y jugaría con más niños, si tuviera otra vez la vida por delante.
Pero ya tengo 85 años y sé que me estoy muriendo.

Talvez mais um ano... ("Calle del dos de mayo en Valladolid)

Talvez mais um ano. Guardei no bloco de notas este "quem sai aos seus não degenera" literário de Goethe:
"De meu Pai tenho a estatura
e o sentido sério da vida;
De minha Mãe, a natureza alegre
e o gosto de fabular."
Não me posso queixar.



segunda-feira, maio 01, 2017

Acta de entrega do III Prémio Hispano-Português de Poesia Jovem Ángel Campos Pámpano

Mais um ano que tive o privilégio de colaborar na difusão da poesia entre os jovens rai(y)anos, participando no júri deste "III Prémio Hispano-Português Ángel Campos Pámpano". Este certame está consolidado como a poesia de Ángel Campos, porém há que continuar a lutar junto dos mais novos por este género com alicerces no ar, tão propenso à eternidade como ao esquecimento. 

Todos os poemas são vencedores para mim, mas estes dois ficarão intimamente ligados à sensibilidade do júri deste ano. Parabéns a todos. "Enhorabuena a todos".


Ratoncito Pérez

Tenho o meu filho mais velho a dormir com o seu primeiro dente caído debaixo do travesseiro. Por aqui quem se encarrega desta tarefas dentífricas é o «Ratoncito Pérez», apesar de eu não saber muito bem se vem e deixa uma moeda em lugar do dentinho. Em Portugal é a Fada Dentinho, se não me engano. Não me lembro bem como foi quando era miúdo, lembro-me de linha preta da caixa de costura da minha avó e de puxões precisos, como o que dei ao seu dente mas com fio-dental previamente atado pela sua mãe. Não havia nada em troca para além duma janela no nosso sorriso, quanto muito um desejo se nos desfazíamos do nosso dente atirado para cima do telhado. Algo em mim quer recordar-se dum lançamento para cima da barraca do quintal da Rua Reguengos de Monsaraz. Não confio nessa imagem, é mais uma dessas a penderem por um fio da minha memória, mas a de hoje ficará bem grafada. Não apenas por mim, mas por ele, pois acabo de encontrar uma carta dirigida a um roedor espanhol debaixo da almofada do meu filho, lá tem escrito com a sua grafia e ortografia de primeira classe: «Ratoncito Pérez, quiero una pistola de Sendokai, sólo eso».
Não entendi muito bem o tipo de pistola, deve ter a ver com algum desenho animado da moda, mas desde já não sei se o rato vai na conversa. De momento, deixou-lhe lá um euro, que era o que tinha na carteira, e quanto à pistola há que se estudar se é para fazer tiro ou alvo ou ir à caça, pois uma criança com tantos dentes ainda por cair e armada é um perigo em potência.